“Com efeito, o mistério
da iniquidade já opera e aguarda somente que seja afastado aquele que
agora o detém.” 2 Tessalonicenses 2.7
Thomas Helwys
(1550-1616) foi, sem dúvida, um dos líderes batistas mais importantes entre os
pioneiros do trabalho. Fiel companheiro de John Smyth até que a “congregação da
padaria” se constituísse como nosso embrião batista na Holanda, com a “crise de
consciência religiosa” de Smyth e sua adesão ao menonitas juntamente com a
maioria da congregação, dependeu de Helwys e de sua firme liderança diante dos
demais a manutenção da fé batista incipiente, não somente na permanência por
mais algum tempo em Amsterdam, mas também na volta para a Inglaterra.
Ao voltar para a
Inglaterra e continuar a enfrentar as restrições e a perseguição religiosa que
ainda existiam, estando o rei James I ainda no poder, Helwys sentiu que deveria
publicar sua visão com relação à liberdade religiosa entre o homem e Deus.
Surgiu então, em 1612, “Uma Curta Declaração do Mistério da Iniquidade” (A
Short Declaration of the Mystery of Iniquity). O rei inglês tinha tido seu
nome ligado à publicação da Bíblia que se tornaria a mais popular da língua
inglesa por muito tempo, Bíblia essa cuja primeira edição foi lançada na mesma
época do livro de Helwys – 1611/1612. James I viu sua autoridade desafiada
pelas idéias do líder batista e lançou-o na prisão de Newgate.
O título de “Uma
Curta declaração do Mistério da Iniquidade” foi baseado no texto de
Tessalonicenses já mencionado e nele Helwys interpreta “o mistério da
iniquidade” como “um poder operante de Sanatás” e,
dado seu contexto histórico, ele via esse mal especialmente na pompa, no poder
e na política das Igrejas Católica e Anglicana, que conspiravam com os governos
para negar a liberdade de consciência. De modo geral, no entanto, o “mistério
da iniquidade” é identificado como o espírito de dominação e opressão em
assuntos de consciência que existia em sua terra natal.
No livro, Helwys
discute o estado deplorável da vida religiosa inglesa, identifica as Igrejas
Católica e da Inglaterra com a profecia da segunda besta do Apocalipse,
descreve os deveres e direitos do rei com relação à religião e aponta erros,
tanto nos anglicanos, quanto nos puritanos e mesmo nos separatistas. Foi o
primeiro tratado escrito na Inglaterra, e um dos primeiros no mundo, a apelar
por completa liberdade religiosa para todos os povos. Helwys radicalmente
desafiou o papel do estado nos assuntos eclesiásticos, declarando: “Porque
a religião dos homens com Deus é entre Deus e eles mesmos. O rei não deve
responder por isso. Nem deve o rei ser juiz entre Deus e o homem. Sejam eles
heréticos, judeus, turcos, ou o que for, não pertence ao poder terreno puni-los
de forma nenhuma”.
Opondo-se
frontalmente à idéia de um ser humano (no caso, o rei da Inglaterra) como
cabeça da Igreja, diz Helwys:
"Pois nós
livremente professamos que nosso senhor o rei não tem mais poder sobre a
consciência deles do que sobre as nossas, e isto é realmente nenhum poder. Pois
nosso senhor, o rei, é apenas um rei terreno e não tem autoridade como um rei,
a não ser em causas terrenas. E se o povo do rei for de súditos obedientes e
verdadeiros, obedecendo a todas as leis humanas feitas pelo rei, nosso senhor,
o rei, não pode requerer nada mais: pois a religião com Deus é entre Deus e
eles mesmos; o Rei não responderá por isso, nem pode o Rei ser juiz entre Deus
e o homem. Isto se torna evidente para nosso senhor, o rei, pelas Escrituras.”
Posicionando-se
contra a religião oficial que se mantinha na Inglaterra, disse Helwys:
“... se houver coisa
tão injusta e de tão grande e cruel tirania sob o sol quanto forçar a
consciência dos homens em sua religião com Deus, vendo que, se eles errarem,
ele precisarão pagar o preço e suas transgressões com a perda de suas almas.
Oh, que o Rei julgue, não é mais adequado que os homens mesmos escolham sua
religião, vendo que somente eles precisarão estar diante do trono de julgamento
de Deus para responderem por si mesmos, quando não haverá desculpas para que
eles digam que foram comandados ou obrigados a serem dessa religião pelo rei ou
por aqueles que tinham autoridade dada por ele?”
É bom entendermos a
importância da obra de Helwys para a sua época e mesmo para hoje. Foi o
primeiro documento em inglês conclamando por completa liberdade de consciência
em matéria religiosa; enquanto Smyth desejava liberdade de consciência
para todos os cristãos, Helwys queria isso para todo mundo, cristão,
judeu, muçulmano (turco), ou herético. O texto revela as condições
políticas e religiosas que existiam durante o surgimento dos batistas, nos
primeiros anos do século XVII, na Inglaterra, permitindo o entendimento das
diferenças entre os incipientes batistas e outros grupos separatistas
diferentes ali existentes. Nele encontramos as primeiras exposições de
doutrinas que os batistas abraçariam e desenvolveriam ao longo do tempo, com
temas como o batismo do crente, uma forma congregacional de política
eclesiástica, o direito do indivíduo de ler e interpretar as Escrituras por si
mesmo, além da separação entre igreja e estado. O livro destaca a importância
da figura de Helwys nos primórdios batistas, revelando seus pensamentos de
forma clara. Sua linguagem pode ser por vezes aguda e ácida, mas reflete bem o
temperamento combativo de seu autor.
Uma religião
estatal, também chamada religião oficial, igreja
estabelecida ouigreja estatal, é um corpo ou credo religioso
oficialmente adotado pelo estado. A primeira igreja nacional histórica dentro
do cristianismo foi a Igreja Ortodoxa Armênia, estabelecida em 301 A.D. A
oficialização do cristianismo em todo o Império Romano ocorreu no final do
século IV, quando “o imperador Teodósio fez da crença no cristianismo
uma questão de autoridade imperial”, segundo as palavras do
historiador Bruce Shelley. Mesmo com o advento da Reforma, algumas
denominações protestantes continuaram como religião oficial, dando sequência à
tradição do catolicismo romano, como aconteceu com o Luteranismo na Alemanha e
com o Anglicanismo na Inglaterra.
William R. Estep,
autor do livro contemporâneo “Revolução dentro da Revolução: A Primeira Emenda
em Contexto Histórico 1612-1789”, retoma o tema de Helwys sobre
o voluntarismo, comentando: “Seu autor não pede ao rei,
como uma criança chorosa, que conceda tolerância religiosa a uma seita
desprezada e suspeita. Em vez disso, o autor adverte o rei a não pecar contra
Deus ao negar aquilo que Deus havia ordenado para toda a humanidade: um
relacionamento com Deus que fosse tão pessoal quanto voluntário”. A
leitura do livro certamente levará o leitor mais atento a se admirar com
relação ao grau de conhecimento bíblico que Thomas Helwys, um leigo batista,
pôde desenvolver em sua experiência pessoal com Deus.
No próximo fascículo,
conheceremos os “Batistas Gerais”, o primeiro grupo de igrejas da história,
exatamente aquelas que provieram de Smyth, Helwys e tiveram continuidade com
Murton.
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