26 e 27 - BATISTAS NO BRASIL

26 e 27 - BATISTAS NO BRASIL
As duas vias

terça-feira, 3 de outubro de 2017

ÍNDICE DOS FASCÍCULOS

Introdução
1)    16 séculos de Igreja Cristã
2)    Anglicanismo: a Igreja do Rei
3)    Puritanos, Separatistas, Batistas
4)    A “Congregação da Padaria”
5)    Membros fundadores pioneiros
6)    O remanescente fiel
7)    A 1ª Igreja Batista Inglesa
8)    Helwys: declarações de fé e de liberdade
9)    Os “Batistas Gerais”
10)  Os “Batistas Particulares”
11)  Imersão e o nome de “Batistas”
12)  A música e o culto batista primitivo
13)  A Associação batista
14)  Os Batistas e o “Mayflower”
15)  Puritanos na Nova Inglaterra
16)  Roger Williams e a 1ª Igreja Batista de Providence
17)  O “buscador” Roger Williams
18)  John Clarke e a 1ª de Newport
19)  A Igreja Batista de Swansea
20)  Os Batistas nas treze colônias
21)  Os Batistas e a liberdade religiosa
22)  Os Batistas e os despertamentos
23)  Convenções batistas e as diferenças regionais
24)  Luther Rice e as missões mundiais
25)  Batistas: os primórdios no Brasil
26)  A “Via da Imigração”
27)  A “Via da Missão”
28)  Missões e Missionários
29)  Albuquerque: Primícia Batista no Brasil
30)  Os Batistas Brasileiros e a Perseguição
31)  O Brasil batista no século XIX
32)  A Convenção Batista Brasileira
33)  O Cantor Cristão
34)  Os batistas letos
35)  Outros batistas estrangeiros no Brasil
36)  Outras convenções batistas no Brasil
37)  Os batistas e as crianças
38)  Os batistas no Estado de São Paulo
39)  Expansão batista nos outros estados
40)  Congressos e Campanhas Batistas
41)  Os Batistas e o Espírito Santo
42)  Os Batistas, 130 anos após
43)  A Aliança Batista Mundial
44)  Batistas no mundo: Europa
45)  Batistas no mundo: Américas
46)  Batistas no mundo: Ásia e Oceania
47)  Batistas no mundo: África
48)  Doutrinas batistas: nossas conquistas históricas
49)  Origens batistas: outras teorias
50)  Os Batistas após 400 anos
Conclusão: O campo é o mundo

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

INTRODUÇÃO

Se os batistas, através de suas convenções nacionais, ou mesmo da Aliança Batista Mundial, quiserem descerrar, em 2012, uma placa comemorativa dos quatrocentos anos de organização da primeira igreja batista geral em Spitalfields, em Londres, na Inglaterra, eles certamente terão muitas dificuldades para definir onde colocar tal placa, já que aparentemente todos os esforços já envidados para tentar localizar o endereço batista inglês inicial têm sido frustrados. Foi mais fácil localizar a antiga Rua da Padaria em Amsterdam, na Holanda, para que nas proximidades fosse colocada a placa comemorativa do embrião batista inicial de 1609, pois pelo menos ali se conhecia a localização da antiga padaria que pertencera a Jan Munter, o menonita.
Spitalfields é o nome de uma primitiva paróquia nas vizinhanças da Torre Hamlets, no chamado East End de Londres, perto da estação da Rua Liverpool e da Brick Lane. A área, hoje comercial, abriga muitos estabelecimentos, incluindo o Velho Mercado de Spitalfield, fundado no século XVII, além de outros endereços. O nome Spitalfields é uma contração de “hospital fields”, em referência ao terreno aberto que ficava atrás do “Novo Hospital de Santa Maria sem Bishopgate”, erigido no lado leste da passagem de Bishopsgate (= portão do bispo), em 1197. O hospital original aparece em antigos mapas da cidade de Londres.
Em comemoração aos 400 anos da primeira igreja batista inglesa, aquela que teve continuidade, dando origem a outras congregações batistas e à denominação em geral, está sendo lançada a coleção “ORIGEM DOS BATISTAS - Uma saga em 50 fascículos”, para contar esta história. Planejada para conter cinquenta textos curtos, a série tentará resgatar a trajetória da Igreja edificada por Jesus Cristo a partir de Jerusalém, no primeiro século, até chegar à denominação batista existente no mundo hoje, uma das mais importantes e numerosas dentro dos grupos originários dos movimentos de Lutero e dos demais reformadores a partir do século XVI. Nossa história como batistas é por demais significativa, em testemunho da fé cristã que defendemos, para passar despercebida como tem acontecido até aqui. É preciso que conheçamos de onde surgimos e o que enfrentamos como denominação, para entendermos como e por que chegamos ao século XXI da forma como aconteceu; assim, talvez possamos vislumbrar o que deveremos ser, como denominação e como igrejas, no futuro, partindo das linhas definidas pelas nossas doutrinas tão penosamente desenvolvidas ao longo dos séculos.
Como igreja cristã, lidamos em dois níveis: o espiritual e o material. É preciso adequar a igreja aos dias contemporâneos no campo material, com métodos, tecnologia e tudo o mais que já está à disposição, ou ainda virá a estar disponível no futuro: estamos lidando neste aspecto no campo dos elementos relativos do homem. Aquilo que é espiritual, porém, a mensagem do evangelho deixada por Cristo aos apóstolos e por eles divulgada, corresponde aos absolutos de Deus, os quais não podemos nem devemos mudar, pois, se o fizermos, estaremos desenvolvendo “um outro evangelho”, como tantos outros grupos já fizeram e ainda fazem, sendo objetos do anátema divino.
A origem dos batistas em 50 fascículos, divulgados um a um, estudados talvez semanalmente: vamos enfrentar o desafio de conhecê-los? Como batista, após pesquisar a história da igreja cristã em geral e particularmente a origem dos batistas ao longo dos séculos, saímos mais convictos das razões bíblicas de nossa fé e cremos que a leitura do material proposto fará o mesmo a qualquer crente realmente convicto da verdade bíblica e da necessidade de a igreja basear sua mensagem no evangelho apostólico neotestamentário. Ao criarmos os fascículos, tivemos em mente o objetivo de elaborar um texto que fosse edificante para a denominação batista em geral, e para os seus integrantes em particular. Que Deus nos ajude a atingir este objetivo.

1 - 16 SÉCULOS DE IGREJA CRISTÃ

“Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo. Mas ainda que nós, ou um anjo dos céus, pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado! Como já dissemos, agora repito: Se alguém lhes anuncia um evangelho diferente daquele que já receberam, que seja amaldiçoado” (Gálatas 1.6-9).

Paulo viveu no século I, tendo nascido entre os anos 5 e 10 do primeiro século, segundo se crê. Acompanhou ele o começo da Igreja, principalmente a sua abertura para os gentios. As igrejas de sua época ainda contavam com a presença física dos apóstolos de Cristo, o que legitimava a mensagem do evangelho. No entanto, quando se dirigiu às igrejas da Galácia, advertiu os irmãos daquela localidade para o perigo das idéias estranhas que, lentamente, começavam a minar a pureza apostólica da mensagem da Igreja.
No decorrer dos séculos, porém, a Igreja começou a se distanciar do padrão absoluto do seu edificador, ao permitir a entrada de heresias e procedimentos baseados na tradição e em decisões humanas. Esse afastamento atingiu um clímax após quinze séculos de história, provocando um movimento que, iniciado na Alemanha, espalhou-se pelo mundo cristão, gerando novas formas de organização do trabalho da Igreja: a Reforma Protestante. Inicialmente, o movimento foi geograficamente limitado aos povos de origem germânica do norte e do oeste da Europa.
É difícil entender como e por que a Reforma Protestante se deu naquela época e daquela forma. Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero, um professor monástico da Universidade de Wittenberg, na Alemanha, quis discutir com seus alunos o abuso da cobrança de indulgências por parte da Igreja Católica. Noventa e cinco teses foram divulgadas na época para iniciar a discussão, mas elas provocaram uma resposta imediata, que iniciou a maior de todas as revoluções da história da igreja. A partir das teses, os acontecimentos se precipitaram a tal ponto que, três anos após sua divulgação, no dia 10 de outubro de 1520, Lutero receberia uma bula papal emitida contra ele, que se referia à sua figura como a de um javali selvagem que havia invadido a vinha do Senhor. A bula papal foi queimada por Lutero, num rompimento com o papa.
Lutero procurou desenvolver sua teologia partindo da Palavra de Deus, onde buscou primeiramente entender o conceito de salvação, chegando à compreensão da justificação pela fé. No final dessa formulação, ficaram famosos os cinco “sola”, expressão latina que significa "somente":
ü  Sola Scriptura: somente a Escritura é fonte de revelação divina escrita.
ü  Solus Christus: a salvação é realizada somente pela obra mediatória de Cristo.    
ü  Sola Gratia: na salvação, somos resgatados da ira somente pela graça de Deus.
ü  Sola Fide: A justificação pela graça é somente por intermédio da  em Cristo.
ü  Soli Deo Gloria: Pela salvação, somente a Deus devemos dar glória.
O Concílio de Trento, de 1545 a 1563, foi a resposta de Roma ao protestantismo nascente. A Profissão de Fé Tridentina reafirmou os diferenciais teológicos católicos, impossibilitando uma reconciliação com os protestantes. Entre as decisões tomadas, o concílio declarou que apenas a Vulgata, a Bíblia latina, era a versão oficial para uso da igreja, mantendo suas tradições e as intervenções papais como tendo a mesma autoridade das Escrituras como base de seus dogmas.
Shelley afirma: “A Reforma veio com furor; Martinho Lutero tocou a trombeta, mas muitos outros abraçaram a causa”. A partir do século XVI, com a trombeta tocada por Lutero, surgiram Zuínglio, Calvino e outros reformadores da história da Igreja, homens que criam na Palavra de Deus “para produzir a reforma que a igreja necessitava, e da qual eles não seriam mais que preâmbulo”, conforme o dizer de Justo Gonzalez. Surgiram então, na esteira dos reformadores, as primeiras denominações protestantes, representadas nas quatro vertentes da reforma: Luteranismo, as congregações da linha de Zuínglio, Calvinismo e Anglicanismo.
Martinho Lutero (1483-1546) deu origem ao Luteranismo. Segundo informações de um site luterano, as doutrinas que definem atualmente a fé luterana seguem os cinco solas já mencionados. No que toca aos sacramentos, seguindo a Lutero no seu Catecismo Maior, os luteranos mencionam apenas dois, Batismo e Santa Comunhão, embora a Confissão e a Absolvição (ou Arrependimento) sejam chamadas de terceiro sacramento. Praticam o batismo tanto de crianças recém-nascidas como de adultos. Quanto à Santa Comunhão, também chamada de Sacramento do Altar ou Ceia do Senhor, creem os luteranos que os elementos consagrados são o verdadeiro corpo e sangue de Cristo “em, com e sob a forma” de pão e vinho para todos os que dele comem e bebem, doutrina essa chamada de União Sacramental.
Úlrico Zuinglio (1484-1531) é o segundo nome que surge no movimento da reforma, tendo atuado principalmente nos cantões da Suíça. Ele defendia que o Evangelho tem autoridade sobre a igreja e que a salvação é pela fé somente, negando o caráter sacrificial da missa, as boas obras para a salvação, o valor intercessório dos santos, os votos monásticos e a existência do purgatório.Representando a ala mais radical da Reforma, seguindo sua linha surgiram os anabatistas, sendo atualmente seus principais remanescentes os menonitasos hutteritas e os grupos amish.
João Calvino (1509-1564), pela importância da sua obra, é apontado como o grande teólogo da Reforma. Com as lnstitutas da Religião Cristã, a partir de Genebra, na Suíça, ele é lembrado por Cairns como tendo sido,“ sem dúvida, um reformador internacional, cujo trabalho influenciou presbiterianos, reformados e puritanos”. Sua importância junto aos batistas será mencionada no devido tempo.
Quatro são as vertentes apontadas pelos historiadores como resultado da Reforma Protestante. As três mencionadas partem, cada uma delas, de um reformador; a quarta, que nos toca mais de perto como batistas, será abordada no próximo segmento.

2 - ANGLICANISMO, A IGREJA DO REI

“Deus colocou todas as coisas debaixo de seus pés (de Cristo), e o designou cabeça de todas as coisas para a Igreja, que é o seu corpo...” (Efésios 1. 22-23a)

Um dos desvios da Igreja Romana foi a hierarquização do Papa como cabeça da Igreja. Nas Ilhas Britânicas, esta visão foi mudada com a Reforma.
A Inglaterra tem uma tradição cristã que remonta aos primeiros séculos. Por volta do século VII, a maioria dos ingleses já era católica romana; nos séculos seguintes, começaram a florescer grupos dissidentes à igreja dominante, e remanescentes desses grupos, tais como os lolardos (seguidores de John Wyclif – século XIV), presentes na vida inglesa ao longo do século XV e mesmo no XVI, constituíram-se em oposição ao romanismo. Por volta do século XVI, muitos cristãos ingleses ansiavam por reformas na igreja, estando a classe média emergente também insatisfeita com os excessivos impostos pagos a Roma, bem como com a existência de inúmeras propriedades da Igreja Romana na Inglaterra. Foi esse o ambiente sócio-político-religioso que encontrou o rei Henrique VIII, ao assumir o trono, em 1509.
“... um soberano elegante, generoso, forte, culto, conhecedor de teologia e bom músico; falava latim, francês e espanhol tão bem quanto o inglês; gostava da caça, arco e tênis”; assim apresenta Cairns ao Rei Henrique VIII. Embora alinhasse tantas qualidades formativas, sua vida amorosa, porém, foi uma sucessão de esposas e amantes em nada edificante. Resumindo a história: o rei teve seis esposas, sendo que apenas a última sobreviveu a ele. Como Catarina de Aragão (sua primeira esposa, filha dos reis católicos de Espanha Fernando e Isabel) não pode gerar o herdeiro masculino que o rei desejava para assumir o trono, Henrique VIII procurou a aprovação papal para a dissolução do seu matrimônio, tendo já em vista um segundo casamento com Ana Bolena. Esta é a causa primeira apontada para o rompimento com Roma e com o catolicismo, dando início ao Anglicanismo na Inglaterra. Uma carta foi enviada ao papa, na qual a nobreza inglesa pedia a anulação do casamento, documento marcado por oitenta e cinco sinetes de nobres e clérigos, apoiando o pedido real. Com a recusa de Roma em atender ao pedido de anulação, a Igreja da Inglaterra foi criada através do Decreto de Supremacia de 1534, separando-se do controle de Roma; Henrique rompeu com o papa de Roma ao se autoproclamar o cabeça da Igreja Anglicana, além de confiscar as propriedades da Igreja Católica Romana nos territórios da Inglaterra. O rei, no entanto, que havia sido condecorado pelo papa anteriormente (dado o seu empenho ao tentar barrar as influências protestantes que vinham do continente), continuava católico e apostólico, tendo apenas deixado de lado o adjetivo romano. Por ocasião da sua morte, “a Igreja Inglesa era uma igreja nacional dirigida pelo rei, mas católica romana na doutrina”, conforme afirma Earle Cairns. 
Em 1547, assumiu o trono Eduardo VI, filho de Jane Seymor, terceira esposa real, tendo “reinado” até 1553. Sendo uma criança com saúde débil, a reforma da Igreja Anglicana começou a ter um contorno mais nítido sob a liderança dos seus regentes (duques de Sommerset e Northumberland), mas também surgiu aí uma nítida diferença entre o anglicanismo e o puritanismo nascente, principalmente quando o puritano John Hooper expôs claramente sua rejeição ao uso das vestes litúrgicas pelo clero da Igreja, consideradas por ele como resquício do catolicismo.
No entanto, morto o varão tão desejado por seu pai, em 1553, assumiu o trono Mary Tudor, filha do primeiro casamento com Catarina de Aragão, na linha sucessória deixada por Henrique VIII. Católica de várias gerações, a nova rainha tentou levar a Inglaterra a uma volta à Igreja Romana. Durante seu reinado de cinco anos, ela restaurou o sistema católico e começou a tentar se livrar dos protestantes. Essa atividade rendeu-lhe o cognome de "Maria Sanguinária" (Bloody Mary), em virtude da perseguição aos líderes protestantes, tendo executado cerca de trezentos dissidentes e provocado a fuga de outros oitocentos para o continente. Esse grupo de refugiados, ao voltar, desempenhou papel marcante na continuação dos acontecimentos.
Como a história é cheia de idas e vindas, com a morte de Maria em 1558, assumiu o trono a terceira herdeira de Henrique VIII, Elisabete I, a última da dinastia Tudor. Filha de Ana Bolena, Elizabeth I governou a Inglaterra de 1559 a 1603, tendo restaurado e dado sequência às reformas iniciadas por seu pai e continuadas por seu irmão. Ela optou, no entanto, por um caminho que priorizava a unidade nacional, e não questões teológicas. Não sendo uma pessoa realmente religiosa, Elizabeth mantinha um catolicismo de aparências, tendo sido levada a aceitar o protestantismo por injunções políticas. A rainha, não desejando perder nenhum tipo de vantagem política, organizou um compromisso entre católicos e protestantes através de um decreto chamado de Acordo Elizabetano, crendo, com isso, ter resolvido as guerras religiosas da Inglaterra. Como cabeça da Igreja, tendo diante de si a missão de conduzir as ações que acabariam por definir que tipo de teologia deveria ser praticado na Inglaterra por seus súditos, a rainha, embora convicta da necessidade de mudanças, mas temerosa da reação popular que elas poderiam causar, optou por medidas que fizessem com que o culto da igreja “se parecesse ao antigo culto tanto quanto o sentimento protestante pudesse tolerar”, segundo afirmação do historiador Walker.
Os oitocentos refugiados do reinado de Maria, anterior a Elizabeth, acabaram por originar, na Igreja Anglicana, um grupo que passou a ansiar e a lutar pela reforma mais completa da igreja, desejando purificá-la ao eliminar todos os resquícios que lembrassem o catolicismo; esse grupo passou a ser conhecido na história como os Puritanos.
Partindo do Catolicismo, no qual o cabeça da Igreja é o papa, passamos pelo Anglicanismo, no qual o cabeça passou a ser o rei. Em ambas as igrejas, o cabeça da organização é um ser humano No entanto, Paulo disse aos efésios que Deus colocou a Cristo como cabeça da Igreja, e isto precisava ser reformado. Todos os fatos históricos aqui narrados são importantes para que possamos compreender a origem dos batistas, pois, tendo como ponto de partida os anglicanos, passando pelos puritanos, encontramos os separatistas, aqueles puritanos que se cansaram de esperar pelas mudanças (que aconteciam de modo muito lento, dependendo da política), até chegar à organização da primeira congregação batista, assunto do próximo segmento.

3 - PURITANOS, SEPARATISTAS, BATISTAS

“Ele (Jesus Cristo) se entregou por nós, a fim de nos remir de toda a maldade e purificar para si mesmo um povo particularmente seu, dedicado à prática das boas obras.” (Tito 2.14)

A Reforma Protestante, após seu impacto inicial, aos poucos se foi definindo em quatro vertentes, seguindo quatro lideranças: Lutero, Zuínglio, Calvino e Henrique VIII. O Rei Henrique VIII deu origem ao Anglicanismo, denominação no seio da qual surgiram os Puritanos.
Como definir e entender o Puritanismo? Shelley, introduzindo o assunto, assim se expressa:

            “Alguns dos exilados forçados a deixar o país durante o reinado de Maria (...), quando voltaram do continente, sob o governo de Elizabeth, começaram a reclamar contra ‘o ócio em Sião’. Eles haviam lido a Bíblia e desenvolvido suas próprias ideias em relação à verdadeira Reforma na Inglaterra. Esses reformadores são conhecidos como ‘puritanos’, pregadores da retidão pessoal e nacional. O futuro estava nascendo.”

Segundo Peter Toon, em sua obra “Puritanos e Calvinismo”, o interesse de Elizabeth I na reforma da Igreja Anglicana “era baseado na premissa de que, enquanto a doutrina cristã é encontrada somente na Bíblia, assuntos secundários como liturgia e organização da igreja podem ser impostos pelo governante cristão terreno”. Opondo-se a essa “meia reforma” surgiu o puritanismo, persuadido de que a igreja precisava ser purificada da influência de qualquer um dos últimos vestígios do catolicismo. O uso de vestimentas, o sinal da cruz, a confirmação, palavras tais como “sacerdote” e “absolvição”, o ato de ajoelhar-se para a comunhão, padrinhos no batismo, etc., eram evidências para eles da permanência da influência de Roma. Eles exigiam a remoção desses “trapos do papismo” e um retorno à simplicidade bíblica. Opunham-se ainda ao Livro de Orações em substituição à pregação da Palavra de Deus, bem como solicitavam uma aplicação de disciplina mais restrita na igreja.
Entre as muitas características dos puritanos, podemos citar: 
ü  Compromisso prático e teológico ao Sola Scriptura
ü  Desejo de uma igreja nacional reformada e purificada na Inglaterra. 
ü  Ênfase na conversão e piedade pessoais, sentindo que estavam vivendo os últimos dias antes da volta de Cristo. 
ü  Ênfase na validade perpétua da lei moral de Deus, especialmente dos dez mandamentos. 
ü  Aceitação geral do Calvinismo Reformado. 
ü  Uma visão de vida integrada, num estilo holístico, sem separação entre o sagrado e o secular. 
ü  Profundo compromisso com o que criam ser verdadeiro louvor das Escrituras, ou seja, nada deveria ser empregado ou praticado que não tivesse explícita sanção bíblica.
Existindo como um movimento histórico distinto ocorrido na Inglaterra entre 1560 e 1660, o puritanismo ofereceu para cristãos de todas as gerações a visão de um modelo da fé como um compromisso decisivo com Jesus Cristo, inserido em uma nação governada pelas verdades bíblicas. Segundo Donald K. McKim, “o movimento foi calvinista quanto à teologia e presbiteriano ou congregacional quanto ao governo eclesiástico”.
Com a demora da Igreja Anglicana em promover reforma mais profunda, outro grupo, então, surgiu dentro do movimento dos puritanos, chamado de “Separatistas”, pois seus participantes pretendiam deixar o anglicanismo, sendo eles puritanos frustrados que haviam deixado de lado a esperança de uma reforma mais abrangente na igreja. Logo após a Conferência da Corte de Hampton, a chamada Petição Milenar, de 1603, pequenos grupos de crentes começaram a se encontrar para adorar da maneira que entendiam que a Bíblia lhes orientava, e não segundo os bispos ou o Livro de Orações. Estavam determinados a obedecer a Deus, mesmo que os líderes religiosos da Inglaterra não estivessem.
W. Walker, referindo-se ao início do separatismo na igreja da Inglaterra, diz que “um movimento separatista cujas últimas consequências foram de largo alcance teve seu início logo no princípio do reinado de Tiago I, quando John Smyth (1570?-1612), ex-clérigo da igreja estabelecida, adotou princípios separatistas e se tornou pastor de uma congregação em Gainsborough. De imediato conseguiu aderentes nos distritos rurais adjacentes...” Era o início do embrião batista ainda na Inglaterra, o qual seria transplantado para Amsterdam, na Holanda, voltando mais tarde para o solo inglês. Era o início do movimento batista no mundo.
            Puritano – separatista – batista: três estágios pelos quais passou nossa história na sua origem, numa evolução muito interessante de se observar. Do puritanismo extraímos o desejo de purificação da igreja e da sociedade, através da purificação do indivíduo. Do separatismo, trouxemos a ideia da necessidade de separação de tudo aquilo que denotava “outro evangelho”, na busca do evangelho autêntico e puro deixado por Jesus e registrado no Novo Testamento. Da origem da palavra batista, ou seja, do batismo, vem o resgate do seu sentido bíblico de testemunho de fé daqueles que já foram alcançados pela mensagem do evangelho e já a aceitaram como realidade de suas vidas: o batismo dos convertidos, em oposição ao pedobatismo, ou seja, batismo de crianças. Em linhas gerais, aí está a origem da denominação batista.
            Você já ouviu falar da “Congregação da Padaria”? É o assunto do próximo fascículo. 

4 - A "CONGREGAÇÃO DA PADARIA"

“... Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado.” (Marcos 16. 15-16)
           
A Companhia das Índias Orientais usava muitos navios em suas viagens pelo mundo, precisando de uma grande padaria para prover suas embarcações com biscoitos e produtos para suas longas viagens. Na parte mais nova da cidade de Amsterdam, na Holanda, a companhia havia erigido sua padaria, no final do século XVI, em um dos lotes ainda vagos às margens do rio Amstel, uma construção bastante ampla. O prédio foi ocupado durante algum tempo pela Companhia e, em 1603, ele foi alugado como Arsenal da Cidade e então, talvez, a padaria tenha sido mudada de lá. Dois anos após, casas foram construídas em volta do local e, a partir de então, a vizinha Bakhuisstraat (Rua da Padaria), foi renomeada como Bakkersstraat (Rua do Padeiro), vindo a propriedade às mãos de Jan Munter, tornando-se, a partir de então, conhecida como “a padaria de Munter”, sendo a propriedade assim designada nos registros do Consistório da Congregação Menonita de Amsterdam. Jan Munter era membro da Igreja Menonita Waterlander.
Ano de 1609: um grupo de pessoas, ingleses dissidentes da Igreja Anglicana, perseguidos em sua terra por causa de suas convicções religiosas e refugiados em Amsterdam, na Holanda, reuniram-se na padaria de Jan Munter, lugar no qual iniciaram uma nova congregação, pois, com base em Marcos 16 e em outros textos bíblicos, acreditavam que uma igreja local deveria ser formada por crentes convertidos e então batizados. Como haviam todos sido batizados como crianças em suas paróquias anglicanas, crendo que aquele batismo não fora biblicamente válido, passaram novamente pelo ato, primeiro o líder espiritual, John Smyth, depois toda a congregação. Organizou-se assim, oficialmente, uma igreja local de adultos que haviam crido no evangelho de Cristo e seguiam sua crença com o batismo, um embrião batista em formação.
Pouco tempo depois, talvez no mesmo ano, Smyth arrependeu-se de ter iniciado aquele trabalho daquela forma, achando que todos deveriam solicitar admissão junto à Igreja Menonita Waterlander da cidade, considerada então por ele como uma igreja verdadeira. Grande parte da congregação foi convencida de que aquele era mesmo o melhor caminho a ser tomado, mas uma dezena de irmãos, sob a liderança leiga de Thomas Helwys, discordou daquela orientação, crendo que o pensamento inicial estava certo e que a congregação deveria prosseguir. A história batista tem como uma de suas características o divisionismo e isto parece acontecer desde a sua origem. A padaria onde a congregação se reunia, de propriedade de Jan Munter, um menonita, havia sido cedida a pedido de John Smyth, o primeiro pastor batista que acabava de solicitar sua aceitação junto aos irmãos da igreja local. O pequeno grupo de Helwys teve que achar outro local para se reunir, já que os seguidores de Smyth continuaram com suas reuniões na padaria, enquanto aguardavam a aceitação dos menonitas e mesmo depois, mantendo, assim, sua fé com cultos na língua inglesa.
A padaria de Jan Munter foi, portanto, muito importante para aquele grupo de refugiados ingleses, pois foi lá que nasceu a idéia de uma congregação a partir da experiência de conversão a Cristo por parte do pecador, seguida de seu batismo. Ideais como autonomia da comunidade local, liberdade religiosa e separação entre igreja e estado começaram a ser ali vivenciados. Muitas das práticas neotestamentárias, como o restabelecimento da imersão como forma de batismo, por exemplo, ainda seriam introduzidas na denominação batista ao longo da história, que começava com aquele pequeno grupo de pessoas. Este início, porém, mostra os batistas como um grupo que não manteve do catolicismo (ou mesmo do anglicanismo) estruturas, procedimentos e doutrinas não-bíblicas, como muitas denominações protestantes mantiveram. Como cristãos sinceros, desde o início, os batistas buscaram na Palavra de Deus a fonte de inspiração e orientação para a volta à simplicidade do evangelho de Cristo e da Igreja, tão desfigurada como organização após dezesseis séculos de cristianismo.
Foi assim que começou a nossa história batista: com uma congregação ainda anônima organizada em uma padaria, congregação essa cuja linha doutrinária ainda viria a ser definida em muitos detalhes, mas que acreditava firmemente ser aquele o caminho traçado por Deus para a vivência do evangelho de Cristo como Igreja, buscando uma linha neotestamentária. A divergência havida não anula a importância da liderança de John Smyth, desde o início na Inglaterra até o momento da organização, bem como da firmeza da liderança de Helwys na continuação da condução daquele pequeno grupo, o “remanescente fiel” batista.

Quantos eram e quais foram os membros fundadores da primeira congregação batista existente no mundo? Este é o assunto do próximo segmento.

5 - MEMBROS FUNDADORES PIONEIROS

“Naqueles dias, levantou-se Pedro no meio dos irmãos (ora, compunha-se a assembléia de umas cento e vinte pessoas) e disse: Irmãos, convinha que se cumprisse a Escritura...” (Atos 1.15-16a)
Quando se levantam os dados históricos da organização de uma igreja, normalmente há uma preocupação com os chamados “membros fundadores”, aquelas pessoas que estavam presentes quando tudo começou. O texto bíblico de Atos menciona cerca de cento e vinte membros fundadores da Igreja de Jerusalém, no primeiro século. O livro que marca o cinquentenário da Igreja Batista Central de Campinas, Estado de São Paulo, traz uma relação de oitenta e cinco nomes de membros, os fundadores da IBCC.
Quantos e quais teriam sido os membros fundadores da “congregação da padaria”? Com base em duas listagens históricas de nomes, dos historiadores William L. Lumpkin e Jacob Cisbert de Hoop Scheffer (o primeiro, batista do século XX; o segundo, menonita do século XIX), comparamos nomes, que diferem às vezes em detalhes de ortografia e abreviações. Verificadas as duas listagens, chegamos a vinte e seis pessoas que são comuns a elas, talvez metade das que estiveram com Smyth no seu auto-batismo, bem como no batismo do restante da congregação, fato que precedeu a organização da primeira igreja batista da história, nosso embrião holandês. Segue a listagem, com as diferenças mencionadas entre parênteses:
1.   Alexander Fleming
2.   Alexander Hodgin (Hodgkins)
3.   Alexander Armfield (Alis Arnfield)
4.   Alexander (Alis) Parsons
5.   Alexander Pigott (Alis Pygott)
6.   Ann Bromhead
7.   Bettriss Dickens (Betteiis Dickinson)
8.   Edward Hankin
9.   Hugh Bromhead
10. Isabella (Isabell) Thomson
11. Jane Argan
12. Joane Brigge (Briggs)
13. John Grindall
14. John Hardie (Hardy)
15. John Murton
16. Margaret Pigott (Pygott)
17. Margarett (Margaret) Staveley (Stanly)
18. Mary Dickens (Dickinson)
19. Mary Smyth
20. Robert Staveley (Stanley)
21. Samuel Halton
22. Solomon Thomson
23. Thomas Helwys
24. Thomas Pigott (Pygott)
25. William Pygott 
26. Thomas Seamer
Como curiosidade histórica, a família Pigott (Pygott) é a que figura naslistagens com o maior número de pessoas; o menonita Scheffer cita em sua lista o nome de Mother Pygott (Mãe Pygott), parecendo ser ela a matriarca da família.
Como já se viu, durou pouco a “congregação da padaria” como um grupo batista, pois a maioria, seguindo Smyth, buscou aceitação junto à Igreja Menonita Waterlander de Amsterdam. Os nomes destacados em negrito são de quatro dentre as dez pessoas que se mantiveram fiéis aos ideais batistas nascentes, o nosso “remanescente fiel”. Os nomes dos outros seis não foram encontrados nos registros históricos.
Quando se sabe que, mesmo para fatos mais recentes, os registros por vezes são imprecisos, ou estão danificados (pelo tempo ou pela traça), ou ainda se perderam, é interessante de se ressaltar que, embora já existam quatrocentos anos de história, os nomes citados nos parecem confiáveis, pois figuram em duas listagens históricas preservadas. Não há dúvida de que o trabalho pioneiro é sempre muito importante, pois sem ele a organização não existiria. No entanto, é importante ressaltarmos também que a continuidade da obra é que vai garantir a sequência do trabalho inicial, para que a chama continue acesa; e não apenas isso, mas cresça e atraia outros, para que as fileiras sejam reforçadas e a obra do evangelho possa alcançar ainda aqueles grupos e aquelas pessoas que, desesperançadas, não conhecem a mensagem do evangelho de um Deus que tanto amou o mundo que enviou se Filho Unigênito, para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Devemos muito a meia centena de pessoas que fundaram a “congregação da padaria”, também à dezena que transplantou a igreja nascente em solo britânico, mas somos os continuadores desta obra, tanto na igreja local, quanto na denominação batista; por isso, não podemos omitir a nossa colaboração.
Deus sempre se valeu, desde o Velho Testamento, de um “remanescente fiel”, um grupo de pessoas que, mesmo com a mudança de convicção da maioria, continuou mantendo fidelidade à proposta inicial de volta às Suas leis. Há também um remanescente fiel batista, que vamos conhecer melhor no próximo segmento.

6 - O REMANESCENTE FIEL

“Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça.” Romanos 11.5
           
O trecho a seguir foi extraído do texto “Lições da Padaria”, de David Coffey, presidente da Aliança Batista Mundial em 2009, um dos primeiros líderes batistas atuais a usar a expressão “congregação da padaria” com referência ao embrião inicial batista:
“Em Amsterdam, a recém-formada congregação da padaria criou uma comunidade cujo louvor e vida em conjunto refletiam mais verdadeiramente o modelo da igreja de crentes do Novo Testamento. Os estudos e conversas da comunidade eventualmente levavam à rejeição da prática do batismo infantil e a uma recuperação da ênfase no batismo do Novo Testamento, que é o batismo dos crentes na base do arrependimento e fé no Senhor Jesus Cristo.”
Assim, John Smyth, que era formado em teologia e havia sido ministro anglicano, batizou-se a si mesmo e aos demais ingleses, num grupo de cerca de cinquenta pessoas. Infelizmente, a “congregação da padaria” permaneceu batista durante muito pouco tempo, talvez menos de um ano após a organização. O que motivou a separação entre os seguidores de Smyth e os de Helwys?
A partir de uma carta preservada como fonte histórica, datada de 12 de março de 1609, podemos deduzir que John Smyth e seus seguidores se arrependeram de seu batismo e que Smyth “confessou seu erro” diante da congregação em janeiro ou fevereiro de 1609, segundo o historiador Scheffer; por essa razão, o grupo foi afastado da recém-criada igreja. Os anos citados por Scheffer podem levar à suposição de que a congregação na padaria tenha sido organizada em 1608, no segundo semestre, e não 1609, conforme é aceito pela maioria dos historiadores.
Dez pessoas permaneceram firmes na fé de que o que havia sido ali realizado até então era de acordo com a vontade de Deus. Thomas Helwys, John Murton, William Pygott e Thomas Seamer, além de mais seis irmãos ou irmãs (cuja identidade não é conhecida), mantiveram-se firmes no propósito que havia levado à organização inicial. Helwys opôs-se fortemente à visão de Smyth, segundo a qual não havia sido válida a organização em igreja da congregação na padaria de Jan Munter, insistindo o líder leigo, em vez disso, em que a formação de uma igreja neotestamentária dependia somente da fidelidade às instruções bíblicas. Os irmãos remanescentes decidiram não somente continuar a viver aquele projeto em Amsterdam, mas também, reunidas as condições necessárias, retornar à Inglaterra para testemunharem do evangelho segundo suas novas crenças, que não eram tão novas assim, mas tinham dezesseis séculos de história, já que eram baseadas no Novo Testamento e inspiradas na Igreja Primitiva e no evangelho apostólico.
Enquanto ainda na Holanda, Helwys resolveu dar suporte teológico à continuação do trabalho de sua congregação. “Uma Declaração de Fé do Povo Inglês que permaneceu em Amsterdam”, publicado na Holanda em 1611, tem muito conteúdo tirado dos escritos de Smyth antes da adesão aos menonitas, mas opõe-se a posturas defendidas por ele após sua decisão. Em vinte e sete artigos, o texto procura cobrir os itens essenciais da fé daquele remanescente que permaneceu fiel aos ideais batistas de congregação formada por crentes batizados após a conversão. Nele, Helwys e o grupo que o acompanhou afirmam vários princípios que, durante quatro séculos, têm continuado a caracterizar a identidade batista:
ü  Membresia da igreja baseada em conversão pessoal e no batismo do crente;
ü  independência de cada igreja local;
ü  governo congregacional da igreja;
ü  apoio a completa liberdade religiosa;
ü  oficiais (pastores e diáconos) selecionados pela congregação local.
A nova igreja não tinha grandes objeções aos menonitas e os considerava como irmãos na fé. Seus membros mantiveram ainda relações próximas com eles, mesmo depois da volta à Inglaterra, mas não reconheceram que tinham errado no modo do batismo que havia sido praticado; fazer isso seria desonrar a legalidade da existência de sua igreja. Levando em conta a disciplina eclesiástica, Helwys e seus seguidores excluíram Smyth e todos os demais do rol de membros, decisão bastante difícil de ser tomada. Dois anos após o fato, Helwys lamentou o ocorrido, enaltecendo as qualidades de Smyth, mas declarando ter chegado à conclusão de que não podiam mais compactuar com suas opiniões, tendo sido levados àquela decisão extrema.
É interessante observar-se que a minoria (dez membros) excluiu do rol da igreja a maioria (cerca de quarenta pessoas), indo, porém, se reunir em outro lugar a partir daquele momento, pois a padaria havia sido cedida em um acordo entre Smyth e Munter. Como Smyth havia aderido aos menonitas, sendo Munter – seu proprietário – membro da Igreja Menonita Waterlander, o grupo que deu sequência à chamada “congregação da padaria” nos moldes batistas deixou de lá se reunir.
O que aconteceu com Thomas Helwys e seus nove acompanhantes? Após a separação de John Smyth e seu grupo, a igreja, de março de 1609 até 8 de julho de 1611 (cerca de dois anos e meio), passou a se reunir provavelmente na casa de um de seus membros. Os historiadores afirmam que o período de permanência do pequeno grupo na Holanda após a separação havida não foi muito tranquilo, com conflitos surgidos entre as convicções batistas nascentes e as proposições da Igreja Menonita.
Assim, o “remanescente fiel”, embrião batista inglês em solo holandês, foi deslocado da padaria, onde começara, para uma casa que acolheu o grupo, para manter a fé e o culto dos irmãos. Da padaria de Jan Munter para uma casa acolhedora: foi assim que começou a nossa história batista, com uma congregação ainda anônima, cuja linha doutrinária ainda viria a ser definida em muitos detalhes, mas que acreditava firmemente ser aquele o caminho traçado por Deus para a vivência do evangelho de Cristo como Igreja, buscando a volta a uma linha neotestamentária.
A expressão “remanescente fiel” aparece na Bíblia diversas vezes (uma delas em Romanos, conforme citado no início), refletindo um pequeno grupo de pessoas que, separando-se de um todo que se corrompeu, decidiu-se a continuar firme na sua fé. Embora tendo o grupo maior excluído do meio batista continuado como cristãos, ligando-se a uma igreja menonita, o grupo inicial merece a denominação “remanescente fiel batista”, pois foi graças a esse pequeno grupo que a igreja batista passou a existir, sendo plantada e crescendo em solo inglês.  Como surgiu, afinal, a 1ª Igreja Batista Inglesa, aquela que deu origem a uma expansão que continua até hoje? Este é o assunto do próximo fascículo.

7 - A 1ª IGREJA BATISTA INGLESA

“Assim, durante um ano inteiro Barnabé e Saulo se reuniram com a igreja e ensinaram a muitos. Em Antioquia, os discípulos foram pela primeira vez chamados cristãos.” (Atos 11.26)

A perseguição religiosa desarraigou o evangelho de Jersalém, levando-o para a Judeia, Samaria e começando a chegar aos gentios, atingiu em Antioquia pessoas que o aceitaram e assimilaram tão bem, que fizeram surgir no mundo a denominação “cristãos”. Assim também, plantado inicialmente em Amsterdam, o “embrião batista” foi integralmente transplantado para as terras inglesas, surgindo em Spitalfields a primeira igreja que seria mais tarde chamada de batista.
Thomas Helwys, John Murton, William Pygott, e Thomas Seamer, além de outros seis irmãos ou irmãs, o grupo menor que se separou do grupo maior em Amsterdam, foram os iniciadores da primeira igreja batista histórica inglesa. Thomas Helwys (1550-1616), o líder, de família abastada, talvez tivesse sido aquele que havia financiado a viagem dos dissidentes para Amsterdam, tendo deixado esposa e filhos na Inglaterra. Consta que a esposa de Thomas Helwys tenha enfrentado prisão nas Ilhas Britânicas, como resultado da perseguição religiosa. Ainda na Holanda, Helwys acreditava que eles tinham o dever de retornar à Inglaterra e testemunhar da fé batista, apesar do sofrimento que isso traria. Os remanescentes do grupo inicial que procurou refúgio em Amsterdam retornaram à Inglaterra em 1611.
Thomas Helwys e os demais membros da sua congregação, na sua volta para Londres, foram residir em Spitalfields, o local de um antigo hospital nas cercanias da cidade de Londres. A área aproximada fica a leste da moderna Estação da Rua Liverpool, perto do mercado da região. Há quem aponte Pinner's Hall como local das reuniões iniciais, mas não se tem certeza a respeito do fato. Ali foi organizada a primeira igreja batista inglesa, em 1612.
O nome Spitalfields foi dado em função do hospital e de um convento, conhecidos como St. Mary's Hospital, fundados em 1197. A maior parte das construções na área ocorreram no meio do século XVII, depois do Grande Incêndio de Londres de 1666. O mercado de Spitalfields foi estabelecido nos anos de 1680. Spitalfields está hoje no coração do East End, uma área conhecida por constantes mudanças ao longo do tempo.
Tendo chegado a Spitalfields em 1611, os remanescentes batistas fundaram a primeira igreja batista inglesa histórica numa área que, cerca de cinquenta anos após, seria em parte destruída pelo grande incêndio. Quando isso ocorreu, a história mostra que a congregação batista havia mudado para outra região da cidade, tendo já frutificado, com a organização de outras congregações em Londres e arredores. Não há, portanto, no local registro da passagem batista, diferentemente do início em Amsterdam na padaria de Jan Munter. Se na Holanda foi possível a colocação de uma placa comemorativa dos 400 anos nas proximidades de onde tudo aconteceu, em Spitalfields isto seria muito mais difícil de acontecer.
Na época, Helwys escreveu “Uma Declaração de Fé do Povo Inglês”, a primeira confissão de fé batista em inglês, como resposta à “Curta Confissão” (Short Confession), escrita por John Smyth em 1610. A declaração batista continha o batismo do crente e a comunhão restrita apenas aos membros, além do sacrifício geral de Cristo e da queda da graça. Diz a Declaração que a igreja é estabelecida por confissão de fé e batismo, sendo autônoma, mas conectada com o todo; seus membros poderiam seguir as ordenanças sem pastor e não deveria a congregação ser muito grande. A autoridade e domínio da congregação se estenderiam apenas àquela congregação e seus oficiais seriam anciãos (ou pastores) e diáconos. A participação no governo do país, bem como seus juramentos, não eram proibidos aos membros da igreja.
Pouco tempo depois de escrito o livro “Uma curta declaração do Mistério da Iniquidade” (assunto do próximo fascículo), Thomas Helwys enviou cópia ao rei James I, com uma carta escrita a mão, ambas as fontes (livro e carta) preservadas pelo Museu Britânico. O período que vai de 1613 até 1616 na vida de Helwys é incerto, mas, a partir de 1614, não há mais menção do seu nome, sendo ele substituído na liderança da igreja por John Murton. O historiador B. Evans, em seu trabalho sobre os primeiros batistas ingleses, afirma a respeito de Helwys: “... sobre sua morte, não sabemos nada.”
John Murton tornou-se pastor da congregação depois da prisão de Helwys, tendo escrito o documento conhecido como “Humilde Súplica” ao rei, em 1620. Também ele enfrentou a prisão, pois declarava submeter-se ao rei em assuntos civis, mas não nos espirituais, pois o sacerdócio dos crentes lhes dá competência para resolvê-los diante de Deus. Morreu na prisão de Newgate.
Outros líderes batistas também se pronunciaram a respeito do assunto. Leonard Busher, membro leigo da congregação de Spitalsfield, escreveu em 1614 “Paz da Religião”, uma petição por liberdade de consciência, texto no qual compara a religião imposta pela força a uma violência espiritual. John Spilsbury, o primeiro pastor entre os Batistas Particulares, que ainda apareceriam, mais tarde, escreveria:“Nenhuma consciência deveria ser forçada em assuntos de religião, porque nenhum homem pode apoiar outro em suas contas com Deus”.
Os registros dão nota de que, por volta de 1624, havia em Londres cinco congregações batistas; já em 1647, o número havia crescido para 47. 
Foi a igreja liderada por Thomas Helwys, seguido de John Murton, a iniciadora da tradição batista no mundo: um embrião inglês que se formou na Holanda e, transplantado para o solo nativo de seus membros, cresceu, floresceu e deu frutos, resultando na significativa presença batista no mundo atual. Conforme se viu, os pioneiros batistas voltaram à Inglaterra ainda em um clima de opressão religiosa, de imposição do anglicanismo como religião oficial do estado. Muitos líderes batistas começaram a defender um tema que ainda era utópico, ou seja, a liberdade religiosa que devia haver no país, bem como a liberdade de consciência individual. “Uma Curta Declaração do Mistério da Iniquidade”, de 1612, escrito por Helwys, é um dos primeiros documentos batistas de fé, publicado em uma Inglaterra onde não se cogitava ainda a liberdade religiosa. O texto de Helwys será o nosso próximo assunto.

8 - HELWYS: DECLARAÇÕES DE FÉ E DE LIBERDADE

“Com efeito, o mistério da iniquidade já opera e aguarda somente que seja afastado aquele que agora o detém.” 2 Tessalonicenses 2.7

Thomas Helwys (1550-1616) foi, sem dúvida, um dos líderes batistas mais importantes entre os pioneiros do trabalho. Fiel companheiro de John Smyth até que a “congregação da padaria” se constituísse como nosso embrião batista na Holanda, com a “crise de consciência religiosa” de Smyth e sua adesão ao menonitas juntamente com a maioria da congregação, dependeu de Helwys e de sua firme liderança diante dos demais a manutenção da fé batista incipiente, não somente na permanência por mais algum tempo em Amsterdam, mas também na volta para a Inglaterra.
Ao voltar para a Inglaterra e continuar a enfrentar as restrições e a perseguição religiosa que ainda existiam, estando o rei James I ainda no poder, Helwys sentiu que deveria publicar sua visão com relação à liberdade religiosa entre o homem e Deus. Surgiu então, em 1612, “Uma Curta Declaração do Mistério da Iniquidade” (A Short Declaration of the Mystery of Iniquity). O rei inglês tinha tido seu nome ligado à publicação da Bíblia que se tornaria a mais popular da língua inglesa por muito tempo, Bíblia essa cuja primeira edição foi lançada na mesma época do livro de Helwys – 1611/1612. James I viu sua autoridade desafiada pelas idéias do líder batista e lançou-o na prisão de Newgate.
O título de “Uma Curta declaração do Mistério da Iniquidade” foi baseado no texto de Tessalonicenses já mencionado e nele Helwys interpreta “o mistério da iniquidade” como “um poder operante de Sanatás” e, dado seu contexto histórico, ele via esse mal especialmente na pompa, no poder e na política das Igrejas Católica e Anglicana, que conspiravam com os governos para negar a liberdade de consciência. De modo geral, no entanto, o “mistério da iniquidade” é identificado como o espírito de dominação e opressão em assuntos de consciência que existia em sua terra natal.
No livro, Helwys discute o estado deplorável da vida religiosa inglesa, identifica as Igrejas Católica e da Inglaterra com a profecia da segunda besta do Apocalipse, descreve os deveres e direitos do rei com relação à religião e aponta erros, tanto nos anglicanos, quanto nos puritanos e mesmo nos separatistas. Foi o primeiro tratado escrito na Inglaterra, e um dos primeiros no mundo, a apelar por completa liberdade religiosa para todos os povos. Helwys radicalmente desafiou o papel do estado nos assuntos eclesiásticos, declarando: “Porque a religião dos homens com Deus é entre Deus e eles mesmos. O rei não deve responder por isso. Nem deve o rei ser juiz entre Deus e o homem. Sejam eles heréticos, judeus, turcos, ou o que for, não pertence ao poder terreno puni-los de forma nenhuma”.
Opondo-se frontalmente à idéia de um ser humano (no caso, o rei da Inglaterra) como cabeça da Igreja, diz Helwys:

"Pois nós livremente professamos que nosso senhor o rei não tem mais poder sobre a consciência deles do que sobre as nossas, e isto é realmente nenhum poder. Pois nosso senhor, o rei, é apenas um rei terreno e não tem autoridade como um rei, a não ser em causas terrenas. E se o povo do rei for de súditos obedientes e verdadeiros, obedecendo a todas as leis humanas feitas pelo rei, nosso senhor, o rei, não pode requerer nada mais: pois a religião com Deus é entre Deus e eles mesmos; o Rei não responderá por isso, nem pode o Rei ser juiz entre Deus e o homem. Isto se torna evidente para nosso senhor, o rei, pelas Escrituras.”
           
Posicionando-se contra a religião oficial que se mantinha na Inglaterra, disse Helwys:

“... se houver coisa tão injusta e de tão grande e cruel tirania sob o sol quanto forçar a consciência dos homens em sua religião com Deus, vendo que, se eles errarem, ele precisarão pagar o preço e suas transgressões com a perda de suas almas. Oh, que o Rei julgue, não é mais adequado que os homens mesmos escolham sua religião, vendo que somente eles precisarão estar diante do trono de julgamento de Deus para responderem por si mesmos, quando não haverá desculpas para que eles digam que foram comandados ou obrigados a serem dessa religião pelo rei ou por aqueles que tinham autoridade dada por ele?”

É bom entendermos a importância da obra de Helwys para a sua época e mesmo para hoje. Foi o primeiro documento em inglês conclamando por completa liberdade de consciência em matéria religiosa; enquanto Smyth desejava liberdade de consciência para todos os cristãos, Helwys queria isso para todo mundo, cristão, judeu, muçulmano (turco), ou herético. O texto revela as condições políticas e religiosas que existiam durante o surgimento dos batistas, nos primeiros anos do século XVII, na Inglaterra, permitindo o entendimento das diferenças entre os incipientes batistas e outros grupos separatistas diferentes ali existentes. Nele encontramos as primeiras exposições de doutrinas que os batistas abraçariam e desenvolveriam ao longo do tempo, com temas como o batismo do crente, uma forma congregacional de política eclesiástica, o direito do indivíduo de ler e interpretar as Escrituras por si mesmo, além da separação entre igreja e estado. O livro destaca a importância da figura de Helwys nos primórdios batistas, revelando seus pensamentos de forma clara. Sua linguagem pode ser por vezes aguda e ácida, mas reflete bem o temperamento combativo de seu autor.
Uma religião estatal, também chamada religião oficialigreja estabelecida ouigreja estatal, é um corpo ou credo religioso oficialmente adotado pelo estado. A primeira igreja nacional histórica dentro do cristianismo foi a Igreja Ortodoxa Armênia, estabelecida em 301 A.D. A oficialização do cristianismo em todo o Império Romano ocorreu no final do século IV, quando “o imperador Teodósio fez da crença no cristianismo uma questão de autoridade imperial”, segundo as palavras do historiador Bruce Shelley. Mesmo com o advento da Reforma, algumas denominações protestantes continuaram como religião oficial, dando sequência à tradição do catolicismo romano, como aconteceu com o Luteranismo na Alemanha e com o Anglicanismo na Inglaterra.
William R. Estep, autor do livro contemporâneo “Revolução dentro da Revolução: A Primeira Emenda em Contexto Histórico 1612-1789”retoma o tema de Helwys sobre o voluntarismo, comentando: “Seu autor não pede ao rei, como uma criança chorosa, que conceda tolerância religiosa a uma seita desprezada e suspeita. Em vez disso, o autor adverte o rei a não pecar contra Deus ao negar aquilo que Deus havia ordenado para toda a humanidade: um relacionamento com Deus que fosse tão pessoal quanto voluntário”. A leitura do livro certamente levará o leitor mais atento a se admirar com relação ao grau de conhecimento bíblico que Thomas Helwys, um leigo batista, pôde desenvolver em sua experiência pessoal com Deus.
No próximo fascículo, conheceremos os “Batistas Gerais”, o primeiro grupo de igrejas da história, exatamente aquelas que provieram de Smyth, Helwys e tiveram continuidade com Murton.

ÍNDICE DOS FASCÍCULOS

Introdução 1)    16 séculos de Igreja Cristã 2)    Anglicanismo: a Igreja do Rei 3)    Puritanos, Separatistas, Batistas 4)    A “C...